É espantoso como há pessoas com tanta garra. Eu acho que não é só vontade. Nasce-se assim.
Vejam esta história que passou ontem em documentário na RTP.
"Conhecia o mundo inteiro e nunca tinha vindo aqui, porque sabia que quando viesse, nunca mais me ia embora."
Luísa Fernandes chegou sozinha a Nova Iorque em 2003, de malas feitas e um objectivo: viver e trabalhar em Manhattan. Tinha 49 anos, não conhecia ninguém na cidade e não sabia falar inglês, ao contrário do que pensava: "Estava convencida de que sabia muitas palavras em inglês e que conseguia juntar aquilo tudo, mas quando cheguei não percebia uma palavra do que diziam." Dois meses depois, com a ajuda de dois dicionários e muitos telejornais, já percebia o que lhe diziam e já se fazia entender. A vida começou a correr tão bem que em Novembro de 2009 foi uma das vencedoras de uma edição do programa "Chopped", onde quatro chefes mostram, em apenas uma hora, aquilo que valem na cozinha.
Levou para casa 10 mil dólares (7 mil euros) e a confirmação de que é uma das melhores chefes de Nova Iorque.
Mas comecemos pelo início. Luísa Fernandes era enfermeira do serviço de ortopedia do hospital Amadora-Sintra, uma profissão que exerceu por todo o mundo, durante mais de 20 anos, com uma paixão e coragem da qual se orgulha: "Fui enfermeira pára-quedista, estive em várias guerras, no Ruanda, no Sudão, na Jugoslávia, sempre em serviço. Sou muito aventureira."
Foi por isso que fazer as malas e rumar a Nova Iorque, sem olhar para trás, não a assustou nem um bocadinho. Contou os anos de serviço como enfermeira, juntou-lhe as temporadas nas guerras, fez as contas e aproveitou o que a lei lhe ofereceu: a pré-reforma ao fim de 30 anos de serviço. Os dois filhos estavam criados e era altura de ir atrás do sonho. "Pensei assim, se conseguir arranjar trabalho num restaurante, fico, se não, fico três semanas de férias e vou embora. Ao fim de seis dias estava a trabalhar no restaurante português Alfama."
A cozinha
Luísa não era uma cozinheira ocasional que de repente decidiu fazer disso profissão. Em Portugal, foi dona de um restaurante em Lisboa durante oito anos. Chamava-se Tachos de São Bento, "por ser próximo da Assembleia da República", explica a chefe a rir, pelo telefone. "Durante o dia era enfermeira, e à noite cozinhava."
Em Nova Iorque já passou por vários restaurantes e ao fim de algum tempo trocou o Alfama pelo Galitos e o Galitos pelo Georgia's Bistrot. Hoje é chefe na Churrasqueira Bairrada, mais um restaurante português, em Jericho, Mineola, na cidade de Nova Iorque. O patrão, Manuel Carvalho, fez questão de pendurar o certificado de vencedora do "Chopped" na parede da sala de refeições, para que toda a gente saiba do talento desta chefe portuguesa. Pelo caminho foi aprendendo tudo o que conseguia: "Fiz vários workshops, leio muitos livros, e aqui aprendi a preparar comida italiana, francesa, new american que é quase como a francesa e jamaicana. Tenho crescido muito em termos profissionais."
Brandon Kai, chefe do restaurante Asiate, do Hotel Mandarin, disse à RTP, no programa "30 minutos", que Luísa "cozinha com paixão e amor, e isso sente-se no que se come". Já Paul Karmichael, outro cozinheiro da nova geração de chefes nova-iorquinos, diz que a portuguesa é "a cozinheira mais amorosa e encantadora com quem alguma vez trabalhou".
Até o actor Johnny Depp fez questão de a conhecer: "Fiz o catering para a antestreia do filme 'Charlie e a fábrica de Chocolate' e eles gostaram muito do meu menu. No final o Johnny Depp foi à cozinha ter comigo para saber como é que uma portuguesa tinha vindo para cá sozinha, porque alguém lhe tinha contado a minha história. Foi muito simpático, é um homem muito simples."
"O melhor, ou não me chamo Luísa"
A entrada no programa "Chopped", da Food Network, um canal especializado em cozinha, aconteceu por acaso: "No restaurante onde trabalhava, tinha feito um menu de brunch com 35 pratos diferentes. Um dia, um cliente habitual veio falar comigo com um formulário para o programa, dizendo que nunca tinha visto um menu de brunch daqueles." Apesar dos avisos da dificuldade de selecção e de todos os castings pelos quais teria de passar, Luísa não se deixou intimidar e concorreu.
O maior problema era o inglês "que não era assim muito bom", mas no meio de várias traduções à letra - imagem de marca da chefe - a mensagem acaba por passar e toda a gente acha graça. Depois de uma entrevista em frente a duas câmaras e uma maratona de sete pratos diferentes, Luísa qualificou-se para as 15 finalistas, entre 2007 chefes femininas.
O programa foi gravado a 13 de Maio, e convicções religiosas à parte, a data deu sorte a Luísa. Durante 12 horas a chefe portuguesa aguentou estoicamente a pressão de um programa de televisão, com todos os truques e tentativas de desconcentração da produção: "É tipo 'Big Brother', provocam-nos, depois fazem entrevistas, só o tempo de competição, em que cozinhamos, é que nunca pára."
Eram quatro chefes a competir, dois homens e duas mulheres. Um deles, segundo Luísa, "um rapazinho novo completamente maluco" que não parava de lhe chamar mamã e que competiu com ela no prato final (sobremesa); uma chefe de comida vegetariana e holística com dificuldade em preparar carne e a primeira a ser "chopped" (eliminada) e um chefe fanfarrão de ascendência italiana, o segundo a ser desqualificado.
E no meio de todo o stresse, com meia hora para preparar cada um dos três pratos, a cozinheira de 55 anos, era a única que não corria desenfreada de um lado para o outro. "Estava convencida de que ia ganhar porque tenho muita confiança em mim e sei que o meu tempero é muito bom. Sou muito calma na cozinha, a minha cabeça pensa em segundos, decido em segundos e mantenho a minha decisão até ao fim sem medo. Quando fizemos o primeiro prato pensei: 'Só não ganho se não quiser.'"
A competição consistia em tirar de um cesto vários ingredientes-surpresa e transformá-los num prato, avaliado pelo júri, sempre presente, pelo sabor, confecção e apresentação.
No final, e já certa da vitória, disse ao júri: "Hoje fiquei com uma certeza, a idade é só um número."
O programa foi para ar em Novembro, assistido com pompa e circunstância no restaurante Churrasqueira da Bairrada, pelos amigos e familiares de Luísa, que fizeram questão de estar presentes. Depois de vários meses a manter segredo acerca da sua vitória - uma imposição do canal - a chefe teve finalmente direito à festa que merecia.
O futuro
Apesar de em Nova Iorque se sentir em casa e de ser "muito, muito feliz", o futuro não passa por ficar nos Estados Unidos "o resto da vida". "Ainda estou apaixonada pela cidade, mas quando já não estiver, quando for mais velha, pretendo voltar para Portugal e abrir um restaurante."